O Admirável Mundo Novo

Piscina do Porto Moniz sem nexo
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Esta história tem mais de quinze anos.

Enquanto a Cristina imitava uma lagartixa ao sol, eu vigiava o Francisco que, na piscina do Porto Moniz, fingia  nadar pendurado em duas braçadeiras ridículas do rato Mickey. A zona das crianças era um espaço seguro pelo que deitei-me num canto e fechei os olhos.

No imediato toda a minha atenção fixou-se no som envolvente da gritaria própria de miúdos que brincam juntos numa piscina com mais chichi que água. Alguns minutos de sonolência apática e despertei de súbito para um diálogo entre alguém e o Francisco.

Abri os olhos e verifiquei que, pelo tamanho, o alguém devia ter uns dez anos, e que pelo sotaque era de Lisboa. O miúdo tinha ar de espertalhão e partilhava uns soldadinhos de chumbo enquanto contava histórias das guerras napoleónicas. Surpreendentemente narrava os actos dos seus soldados numa verborreia continuada e fluente, e foi assim que fiquei a saber que, sob o comando de Junot, as tropas francesas atravessaram Espanha e entraram em Portugal mas que por sorte os reis portugueses já se tinham pirado para o Brasil.

Abismado com as datas e locais, fiquei também a saber que o General Loison levou um enxerto de porrada duns agricultores portugueses quando tentou tomar a cidade do Porto. Emergiu em mim um misto de admiração e inveja pelo intelecto da figurinha.

E de repente e sem ninguém esperar ouviu-se uma voz de adulto – Gonçalo, venha comer a sua maçã das dez e meia!

E foi assim, e sem qualquer aviso, que o monólogo brilhante do Gonçalo foi interrompido por uma senhora petulante com ar de avó. E o Gonçalo, triste, foi-se com os seus soldados. Sorri e senti pena. Uma maçã pontual deve ser um costume de Lisboa.

Voltei a fechar os olhos e dei por mim a imaginar o Gonçalo a viver no Admirável Mundo Novo de Aldos Huxley. Imaginei ainda o Pai do Gonçalo com os seus óculos redondos declamando às refeições um impercetível Allan Poe provocando orgasmos mentais consecutivos na mãe, na empregada doméstica, no periquito, no gato persa, e no…

-Pai!…Pai!… Despertei do meu torpor.

Era o Francisco, que radiante nadava agora apenas com um rato Mickey. Aplaudi, olhei para o relógio, e disse-lhe – ganhaste o gelado das 11H28! E lá fomos comer os dois um gelado.