O Fumo das Cigarrilhas

Cigarrilhas sem nexo
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No início do nosso casamento a Cristina ia sempre jantar com um grupo de amigas a que ela chamava o “jantar das nabas”. Eu aproveitava o evento e ia também jantar com os meus amigos, mas combinávamos sempre encontrarmo-nos os dois em casa por volta da meia-noite.

Eu e os meus amigos jantávamos quase sempre arroz de marisco num pequeno restaurante que havia na Praia do Vigário. Os jantares eram sempre morosos e bem regados e por isso já passava das 23 horas quando parei o carro em frente a uma tasca, que ficava apenas a uns cem metros do apartamento onde vivíamos em Câmara de Lobos.

Estava a tentar deixar de fumar, mas os efeitos dos vapores do álcool eram mais fortes que a minha vontade, e por isso entrei para comprar cigarrilhas. A tasca não era bem frequentada e as histórias de tráfego de droga e as pancadarias faziam parte do dia-a-dia. Na altura, eu pertencia à Cooperativa de Habitação e por isso de algum modo era mais ou menos conhecido na zona, assim o risco de entrar num antro daqueles e apanhar um enxerto de porrada era diminuto.

Aproximei-me do balcão, apontei para uma caixa de cigarrilhas e pedi uma. O Bar estava vazio mas entretanto reparei que ao fundo, a tentar segurar o balcão, estava um homem com uns 30 anos, barba por fazer, com um copo de vinho na mão. O Dinarte – era assim que ele se chamava – olhou fixamente para mim, meteu conversa, e ordenou que me servissem um “vinhinho”. Não se deve nunca contrariar os doidos e os bêbados, mas como o vinho Jacquet fazia-me azia, pedi para trocar por uma Coral. Adorava ouvir as histórias de pescadores e – como era ainda cedo – pedi mais uma cerveja e um vinho, e foi de copo em copo, que a conversa encaminhou-se da pesca, para o futebol, e depois para o sexo.

E foi assim que soube que o Dinarte tinha casado há quase um ano, e que tinha já um filho pequenino, e que a mulher Lurdes já estava grávida outra vez. Cambaleando e com o bafo em cima de mim, o Dinarte jurava que para um casamento resultar tínhamos de dar “uma” de manhã e “outra” à noite porque o “leite” era um calmante para elas. Em poucos minutos eu tinha ouvido a maior barbaridade da vida sobre o sexo, mas ri-me perdidamente. Eu era cúmplice daquilo tudo porque as histórias dele divertiam-me, e foi ainda a rir, que olhei para a porta e vi-a entrar.

Era a Lurdes, a mulher do Dinarte, aos gritos. Era linda de morrer. Cabelos compridos e negros, com uns olhos azuis e uma boca de fazer babar qualquer ser humano, bonita, bonita mesmo, e trazia com ela uma barriga de grávida empinada já com alguns meses e ao colo um miúdo lourinho, rameloso com a boca toda suja de ranho.

Era uma visão simultaneamente bela e repugnante, e a primeira coisa que me veio à cabeça é como é que uma mulher daquelas, se tinha apaixonado, amado, casado e até ter tido filhos com aquele traste. É a vida?

Armou-se logo confusão, e sem largar o miúdo, a Lurdes batia no Dinarte enquanto gritava que ele era um bêbado e um “paneleiro”, e que não lhe dava dinheiro para comer. Parecia um filme. Ele chorava e protegia-se como podia, e foi em esforço que eu e o dono do Bar conseguimos separá-los.

Já passava da meia-noite quando a confusão terminou. O Dinarte saiu na frente escorraçado, e ela lançou-me o último olhar como se eu também fosse culpado de alguma coisa e saiu.

Perdi a vontade de rir.

Paguei o que havia a pagar, e saí da tasca. Chuviscava e o vento soprava forte de sudoeste. As tempestades de sudoeste eram frequentes no mês de Dezembro e traziam o delicioso cheiro a mar que eu sempre adorei, acendi outra cigarrilha, fechei o casaco e dirigi-me para casa pensando na mulher e na vida fabulosa que eu tinha. Havia luz no apartamento, a Cristina já lá estava. Abracei-a, mas nunca lhe contei a história do Dinarte. Nunca mais os vi.

Anos mais tarde fiquei a saber que afinal o esperma tem químicos que funcionam como antidepressivos e que o Dinarte tinha morrido de cirrose.